O dia amanhece como qualquer outro. Mas hoje será diferente de todos os outros. Foram vários dias dormindo em barracas, na terra fria e suja, ao relento. As latas de comida que trouxeram estão acabando. É hoje. Chegou o dia de atravessar a fronteira. Dia de começar uma nova vida.
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Pequeno, loiro e de olhos azuis. Era fácil para ele escapar pelo bueiro, andar pelas frestas, ir e voltar. Ir, levando sua fome imensa, seu medo de tamanho ainda maior; e voltar trazendo mantimentos: repolho, batata, pão. Carne, eventualmente, mas não de porco, que eles não poderiam comer. Tio Mikael parecia um pequeno polaco, se não se olhasse nos olhos; o pavor e o cansaço logo denunciariam que não era uma criança qualquer.
Enquanto aguardo, penso nele: mais semelhanças do que diferenças. Ha! Fácil falar! Fácil: andar pelos canos de esgoto. Aqui estou eu, três dias longe de casa e aborrecida com tudo: mosquitos, calor, e depois o frio, suor - o meu, o cheiro dos outros que estão perto demais. Gente perto demais: é isto o que mais me incomoda.
Meu apartamento é pequeno e simples. Aos domingos, saio bem cedo e compro os jornais. Também pão e mel, e na volta faço aquilo que não consigo fazer durante toda a semana: desfruto do tempo. O luxo maior é este, não é dinheiro ou uma casa maior. É o tempo só meu, sossegada, comendo minha torrada e tomando meu café quentinho, virando devagar as páginas do jornal; meu ritmo, no meu espaço. É tão aconchegante, o meu apartamento, que três dias fora de casa parecem uma tortura.
Por isto, fico observando aqui este calor danado, sendo que de manhã estava um frio desagradável, e o vento trazendo este cheiro de centenas de pessoas que estão há dias sem tomar banho… o que eu quero dizer é que o meu conforto normal - meu Deus, eu disse normal! - o conforto com o qual, por inúmeras razões sociais, históricas e econômicas, eu estou habituada, me faz pensar e tentar me colocar no lugar do meu tio Mikael. Ou de um destes refugiados esperando do outro lado da fronteira. Esperando o que, não entendo exatamente. Mas eles estão claramente se agrupando, organizando, esperando alguma coisa.
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"Esperando há horas. Cansada, enojada. O cheiro ruim de gente, desta gente que não toma banho. Que quer entrar no meu país e tomar o meu emprego. Sempre a mesma coisa: promessas, promessas, promessas: os nazistas, os soviéticos, os capitalistas. Já tivemos decepções o suficiente. Primavera de Praga! União Europeia! Saímos da União Soviética, mas entrar na economia de mercado não nos trouxe nada. As promessas de prosperidade não foram cumpridas. Nos prometeram turistas, agora nos mandam refugiados."
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Ser jornalista, para mim, é uma identidade. Nunca imaginei que eu pudesse ser outra coisa, desde o dia em que o vovô chegou em casa com a máquina de escrever de plástico. Eu guardo ela até hoje. As teclas tinham desenhos; tanto fazia, eu ainda estava anos distante de aprender a ler. Eu passava horas lá quieta, sentadinha, batendo os dedos nas teclas e contando histórias. Eu escrevia livros, contos, cartas? Não. Eu fazia reportagens.
O vovô entregou o presente, ajudou a abrir e foi para a copa tomar um café com a mamãe. Sempre que ele vinha em casa tinha um bolo Pullman, que eu adorava porque podia ficar com a faquinha de plástico que vinha junto na embalagem. Ele e a mamãe ficaram lá, conversando em voz baixa - tinha tardes em que eles riam alto, outras em que cochichavam, sérios, e até uma que prefiro nem lembrar em que gritaram um com o outro e depois mamãe passou horas deitada na cama, chorando.
Bom, neste dia o vovô e ela ficaram lá na copa, mas eu não lembro se foi um dos dias agradáveis ou não. Imagino que eles ficaram dando risada, gargalhando alto - certamente fofocando sobre a vida alheia - pois a parte que eu lembro é de ele chegando no maior bom humor e me perguntando o que eu estava escrevendo. Quando eu disse que era jornalista e estava escrevendo uma história, ele me perguntou sobre o que era. Eu eu gaguejei! Lembro até hoje de uma sensação de vergonha, de saber o que se quer fazer mas não conseguir explicar muito bem o que é que isto significa.
Ele sentou do meu lado com toda a calma e perguntou:
- Quer que o teu vovô te conte uma história?
Eu disse: - claro! e ele começou a contar a história da vida dele.
Meu avô havia estudado, o que era bastante raro - mais tarde, proibido. Estudou algo como contabilidade, acho, me contaram que era economia mas imagino algo mais técnico, como um guarda-livros. Enfim, ele foi trabalhar como gerente em um banco em Berlim. Pacificista, demorou ao máximo para se alistar na Primeira Guerra. Ao retornar foi demitido e, de volta à Varsóvia, encontrou um cenário de dificuldades. Sem emprego, sem espaço. A família tinha dinheiro e vivia relativamente bem, considerando o fato de serem judeus na Polônia. Ninguém poderia, nos piores pesadelos, imaginar o horror que se avizinhava. Mas de alguma forma a Segunda Guerra se avolumava, ocupando o imaginário. Sinais sutis deixavam entrever a exclusão que se aproximava, fosse em um olhar inesperado de alguém que se conhecia de vista e até outro dia sorria, até cumprimentava, e de súbito olhava com rancor como se estivessem roubando algo dele. Escárnio, desprezo, mágoas injustificadas. Apesar de incompreensível, a crescente má vontade era palpável. O incômodo ia num crescendo e as oportunidades eram cada vez mais improváveis.
Os homens, todos à procura de emprego, faziam o que sempre fazem nesta situação ao longo da história: conversavam. Tinham ideias, trocavam impressões, parados à frente de um bar ou em uma esquina qualquer.
- Ele se foi. Pagou (uma determina quantia, pequena a princípio e, conforme chegavam relatos de chegadas mais ou menos bem sucedidas, os valores aumentavam) para o dono do navio.
- Dizem que lá tem de tudo: lugar para morar, comida à vontade.
- As pessoas são gentis, não se importam de ensinar a falar o idioma de lá.
- Mas esta língua que eles falam lá é muito enrolada! Impossível aprender!
- Eu, por mim, acredito que aqui sempre estaremos mais seguros.
- Claro! Antes de ser judeu eu sou alemão. Vocês, poloneses, aqui sempre foi tudo bem pior.
- Mas tem que ser muito mishigne (maluco, louco, em iídiche- idioma dos judeus ocidentais que mistura alemão, polonês e russo) para largar tudo e pegar um navio para o desconhecido.
Uma destas famílias que se indignavam com o pessimismo era a da minha tia avó. A irmã do meu avô havia se casado com o judeu mais rico da Polônia, e viviam em um verdadeiro palacete. Tão belo que, assim que os nazistas chegaram, foi imediatamente confiscado como sede da Gestapo e a família que lá vivia foi enviada para um campo de concentração. Este ramo da minha família foi extinto.
Alguns anos antes disso, uma destas conversas com os outros homens mudou alguma coisa na cabeça do meu avô. Terá sido a desesperança em ficar na terra natal, ou ao contrário a esperança em um futuro melhor? Seja como for, um sentimento ou o contrário dele, o fato é que um dia ele se encheu de coragem e partiu para uma terra desconhecida.
Os cunhados e sogros já haviam partido. Minha avó tinha oito irmãos: o tio Ben e sete irmãs. Todos foram para onde, na verdade, todos queriam ir: Nova York. Meus avós tinham dois problemas em ir com o resto da família. O primeiro, burocrático, pois minha avó já estava casada e portanto tinha outro sobrenome. O segundo, eu não sei avaliar qual o peso real, se tratava de um escândalo. Para os judeus o noivado é ainda mais sério do que o casamento, é um compromisso de palavra, que não deve jamais ser desfeito. E o meu avô Yicek estava noivo de uma das irmãs da minha avó, quando se apaixonou por esta e trocou de noiva. Não é difícil imaginar que este assunto era um tabu na minha família e, embora não fosse um segredo, também não era assunto para a mesa de refeições. Seja como for, o Brasil estava começando a receber uma cota de imigrantes judeus, e algumas histórias de quem havia partido eram bastante otimistas.
Ao contar histórias do passado, longos períodos de sofrimento podem virar uma frase como "foi muito difícil"; sonhos abandonados, "tivemos que desistir"; travessias bem sucedidas, "aí então, chegamos". Sei que minha avó ficou na Polônia com a sogra, que era rica e arrogante. Nas palavras de vovó, a aventura transmarina de meu avô era pouco comparado ao imenso sacrifício de morar na casa de uma sogra que fazia insuperáveis distinções de classe e criticava a nora dia e noite. Ao contrário da filha sofisticada, com seus filhos maravilhosos, o filho - meu avô - havia escolhido uma qualquer, e então feito o pior, trocado de noivas dentro da mesma família simplória e escolhido a minha avó. Lá ficou ela, com as duas crianças, minha tia Salomea (mais tarde, no Brasil, adotou o nome Sarita) e o recém-nascido Marek.
Uma manhã, estavam no parque da cidade. Que, acredito, deve ser lindo, pois todos dizem que Varsóvia é uma linda cidade. Jamais saberei, pois minha avó me fez jurar, no leito de morte, que eu nunca poria os meus pés lá. (Por outro lado, meu avô dizia que ao acordar no Brasil a gente devia ajoelhar e beijar o chão, todos os dias.) Enfim, minha avó dava uma maça para a pequena Salomea enquanto o nenê Marek descansava em seu carrinho. Quando virou-se novamente, o carrinho havia sumido! Uma mulher sozinha - judia, ainda por cima - marido distante, pais e irmãos também distantes; todos em que confia estão em outro continente! E seu nenê sumiu. A ida à delegacia foi constrangedora, além de praticamente inútil. Quem liga para um judeuzinho desaparecido? Foi só nas primeiras horas da manhã seguinte que moradores, incomodados com um choro insistente que vinha de um porão, acionaram a polizei. Em algumas noites da minha infância, eu pensava naquele bebezinho chorando em um porão. Ironicamente, o nenê que foi salvo pelo som do próprio choro permaneceu mudo por anos. Ele, meu tio Marek, só foi superar o trauma do sequestro e começar a falar depois dos sete anos de idade.
Como eu dizia antes de me perder na história, este lance de conforto significa o seguinte: estou tão acostumada com as minhas coisas certinhas, em casa, que quando falta água, ou luz, sei lá, parece uma catástrofe. Mas meus avós vieram para o Brasil em condições precárias! E estes imigrantes que vejo hoje, cumprindo o meu dever de jornalista de guerra, também tinham casas, água, luz, telefone. Dá até uma vergonha lembrar de um dia em que fiquei sem wifi e foi como se o fim do mundo estivesse chegando. Sendo que meu celular tem internet também, claro, eu só não queria ter que passar os arquivos de uma máquina para a outra.
Estou incomodada, os mosquitos zumbindo perto do meu ouvido, minhas galochas pesadas de lama. Daí olho para o outro lado da cerca - que na verdade é como uma cerca imaginária, pois é possível desviar dos pedaços de arame e das estacas e vir andando, embora eu não saiba o que aconteceria se alguém ousasse fazer isto - o que acontecerá - e, do outro lado da cerca, tem gente que morava em casas, ia aos colégios, aos cinemas, eu sei disso muito bem pois li inúmeros documentos antes de sair da minha casa confortável para cobrir a zona conflagrada, e estas pessoas estão dormindo em barracas, no meio da lama, há dias! Vejo muitos homens, claro, mas também famílias, gente com cara de normal; digo, pessoas quaisquer, comuns, não necessariamente gente que já nasceu despossuída e está acostumada a passar desconforto…meu Deus, o que estou dizendo, eu sei muito bem que somos todos iguais e merecemos uma vida sem sofrimentos, todos nós! É só que este clima,este calor, este zumbido…esta tensão - me deixam confusa.
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Como a grande maioria dos meninos de sete anos, o sonho de Zaid é ser jogador de futebol. Não parece nada de tão improvável, afinal o pai foi técnico de futebol em Aleppo, jogou e chefiou o Al-Fotuwa, time campeão da primeira divisão na Síria. A família saiu de lá e foi viver na Turquia em 2012, mas as coisas teimavam em não melhorar e o filho mis velho fez a travessia rumo à Alemanha. Osama, então, planejou uma estratégia cuidadosa: iria com o filho caçula até Bodrum, onde pagaria 800 libras por um lugar no bote inflável até a Ilha de Kos. Levar o caçula seria duplamente vantajoso: ele poderia viajar no colo, sem pagar; e iria sensibilizar as autoridades da fronteira. Uma vez lá, ele, o mais velho e o caçula, seria mais fácil levar a mulher e as outras crianças.
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"Pequenos nojentos. Gente suja. Árabes, ciganos, judeus. Não me venham com esta bobagem de 'déficit de compaixão nos países do Leste Europeu'! Estamos todos perfeitamente confortáveis com nossas ideias; meu vizinho, meu chefe e colegas no trabalho, minha família; meus conhecidos; o padeiro; o açougueiro. Até mesmo o primeiro-ministro Orbán proibiu as imagens de crianças refugiadas na TV. Todos pensamos exatamente a mesma coisa: não queremos estes imigrantes sujos aqui entre nós."
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Parada aqui de pé, neste campo de refugiados - nossa, estou tão cansada, quase falei campo de concentração - percebo que acabei me distraindo e não contei ainda a história do tio Mikael. Então, olha só, ele era louro, pequeno, olhos azuis. O meu modelo, enfim, imagina eu só que menino. Quando os judeus foram confinados em um só bairro, no chamado Gueto de Varsóvia, ele não precisou sequer sair de casa. A família dele morava lá mesmo, em uma casa que ficava bem no centro do bairro. Só o que mudou é que um monte de gente se mudou para lá, e a casa que era pequena ficou super apertada. Bom, como dizem, onde dorme um dormem três. Só que no caso da comida, óbvio, isto não é verdade. Além do mais a ração de comida foi reduzida em muito, e o número de comensais só aumentou.
Alguém tinha um contato de uma polonesa bondosa, destas personagens que somem na história misturadas a tantos outros tipos: os bons, os ruins, os péssimos. Uma tremenda injustiça pois o mundo é melhor, ou menos ruim, graças a tipos como eta senhora. Meu tio Mikael saia do gueto por baixo, isto é, rastejando pelos túneis de esgoto. Parece um caminho como qualquer outro, assim falando, mas não é: sabe a diferença entre andar na rua olhando a paisagem, ou de metrô, embaixo da terra? O metrô é limpo, rápido, civilizado; mas, se você reparar bem, chega uma hora que dá um certo baixo-astral pois não é natural. A gente não nasceu para andar sob a terra, a luz é artificial, o ar também…quem nunca passou pela aflição de ficar preso em um vagão do metrô com pânico de sufocar e medo de entrar em pânico? Agora, imagine que a tubulação do esgoto tem…está lotada de…bem, você entendeu.
Mas há que se reconhecer que era uma sorte, e não azar. Pois ao menos ele tinha esta alternativa, abria a tampa do bueiro ao lado de sua casa e andava, andava, andava, e saía nas proximidades de uma outra casa, dentro da qual havia uma trouxa à sua espera: batatas, repolho, nada de delicioso mas mesmo assim era a salvação da família inteira. E, quero crer (ainda que seja apenas a minha fantasia) que lá ele era recebido com carinho. E quem sabe, algum mimo: um chá, mesmo que ralo, de cevada, aguado mas quentinho; uma fina fatia de pão que ele tentava comer com educação; sem sucesso, é claro, devia estar sempre esfaimado.
Vi um filme, um documentário produzido pelos nazistas para mostrar ao mundo como a vida no gueto era ótima. O cinegrafista (sim, seu colega, amigo, sempre vocês filmadores tão brincalhões) filmava tudo, o material bruto na minha sincera opinião tinha muito mais coisa do que seria necessário. Enfim, ele mostrava a parte que claramente iria fazer parte do filme final produzido: lindas senhoras até meio gordas, bem maquiadas, com seus casacos de pele e alguma joia, entrando em um prédio de apartamentos onde iriam jogar carteado. Sim, diga-se de passagem: jogar cartas é um hábito muito judeu! Todos da minha família adoram jogar, menos eu. Mas eu também cresci jogando, depois foi que este hábito de contar histórias tomou conta de mim e… bem, voltando.
As pessoas entravam no prédio uma vez e outra, as mesmas senhoras cheinhas e os homens de terno, e lá pelas tantas você percebe que as cenas eram montadas, isto é, faziam parte de uma filmagem. E que era tudo muito falso, quando não sabiam que estavam sendo filmados as pessoas faziam caras horríveis, esgares de profundo sofrimento. Enfim, antes de terminar as filmagens, ou ao menos a edição, o gueto caiu. O nome é o contrário, né, houve o Levante do Gueto. Que sugestivo, o nome ser o contrário. Enfim, o comandante assistiu o material bruto da filmagem e horrorizado, suicidou-se, dá para acreditar?
Havia uma cena neste filme que me fez ficar super arrependida de ter assistido, aliás entrei sem querer neste filme. Uma pessoa está andando e eu percebi, horrorizada, que também era o meu modelo. Digo, poderia ser eu em outra época, ou mais corretamente poderia ser um parente meu - talvez fosse. O filme que assisti era na verdade um documentário, que mostrava estas filmagens e também entrevistava uns poucos velhinhos ainda sobreviventes - e eles choravam e se recusavam a assistir com pavor de ver algum conhecido: "e se mostrar a minha mãe, ou o meu irmãozinho que morreu no gueto?". Mas a cena que me marcou foi essa: uma pessoa do meu tamanho, cor e tipo físico - só que extremamente magra - está andando na rua. Ela para. Cai. Está morta. Morreu de fraqueza, fome, frio. Não tem mais forças para andar, e deitar no chão, na rua, é mostrar que entendeu que está morrendo, que é questão de minutos. Desistiu - a doce e dolorosa opção de desistir. Ninguém a tira de lá. Este é o pior: ninguém tem forças, e de qualquer modo não vale o esforço.
Há um carrinho, destes de recolher lixo reciclável. Alguns moradores do gueto passam, de vez em quando. Jogam o corpo desta pessoa que se parecia comigo dentro do carrinho, e continuam andando. Mais para a frente esvaziam o conteúdo do carrinho em um local destinado a isto, uma esquina reservada para os restos do caminho.
Sim, obrigada, só um pouquinho. Desculpe, fiquei emocionada.
Mas, continuando. Meu tio Mikael um dia voltou para casa só que, ao chegar, não havia mais casa. E nem bairro, vizinhos, nada, só barricada e fogo. Sua mamãe, papai, irmãos, tudo e todos que conheciam estavam lá dentro. Ele deu meia volta com seu farnel de comida e agasalhos e saiu andando. Andou dias e noites sem parar, atravessou fronteiras. Andou até a Itália, juro. Ao sentir o cheiro de queijos provolone pendurados para secar, aquela gordura rica pingando e penetrando o ar, desmaiou.
A família de fazendeiros poderia facilmente ter chamado a Gestapo e indicado o paradeiro do judeu fugitivo. Digamos que havia 50% de chance da história terminar assim: tio Mikael é levado para um campo de concentração, encontra ou não algum membro remanescente da própria família, morre ou é libertado e tem que atravessar caminhos de neve a pé. Mas, não. Ele foi acolhido e cuidado; após o final da guerra foi para Israel, onde virou herói com direito à estátua em praça pública.
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Osama leva pelas mãos o filho Zaid, vai deixar para levantar no colo quando chegar mais perto. Esta é a estratégia: ele, que já levantou troféus em competições de futebol, está hoje levando o seu salvo conduto, capaz de salvar toda a família. É um jogo, afinal: a meta é cruzar a linha de campo (Röszke, fronteira da Hungria com a Sérvia); o gol é encontrar Mohammed, na Alemanha; vencer o jogo será reunir a família e iniciar uma nova vida. Vida interrompida quando o Estado Islâmico o puniu por ser simpático à revolução síria e mandou um recado doloroso: um de seus filhos foi baleado na frente de casa - na perna.
Agora começa a partida: ele pega o filho no colo e sai correndo.
Mas não houve um chute; houve, sim, uma falta grave. Alguém estendeu o pé! A dupla cai, vai ao chão.
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O mundo inteiro assiste perplexo o vídeo daquela mãe solteira passando uma rasteira. A imagem que fica é do pai olhando, assombrado, a mulher que o derrubou.
Ela, a bruxa Magiar, lamenta em casa a perda do emprego. "Eu queria uma boa imagem, só isso."
Petra e seu coração de pedra assistem TV em casa. Na tela, Cristiano Ronaldo entra em campo para jogar pelo Real Madrid levando o pequeno Zaid pelas mãos. Ele o pai logo estarão em Munique.
Esta imagem emocionante seria suplantada, em poucos dias, pela de um menino dormindo o seu sono infantil, eterno, na beira do mar.